Recursos do SUS foram ilegalmente transferidos para conta única do Estado. MPF e MPE exigem devolução
JORGE VENANCIO (*)
O governo Serra foi flagrado por uma auditoria federal desviando recursos do Fundo Estadual de Saúde para a Conta Única do Estado. Diz a auditoria nº 8228/2009 realizada pelo DENASUS (Departamento Nacional de Auditoria do SUS do Ministério da Saúde), que analisou os anos de 2006 e 2007, na sua conclusão: “Os recursos repassados Fundo a Fundo pelo Ministério da Saúde como, por exemplo, Assistência Farmacêutica Básica, Medicamentos Excepcionais e Alta Complexidade são transferidos para a Conta Única do Estado assim que creditados pelo Fundo Nacional de Saúde nas contas dos Blocos de Financiamentos”.
Essa é uma flagrante violação da Constituição Federal que prevê, no parágrafo 3º do Artigo 77 das Disposições Transitórias (que o leitor pode ver no box ao lado), que os recursos da Saúde, sejam os federais repassados Fundo a Fundo, sejam os estaduais devem ser colocados no Fundo Estadual de Saúde.
Essa arbitrariedade provocou uma inédita união entre o Ministério Público Federal e o
Ministério Público do Estado de São Paulo que fizeram uma recomendação conjunta bastante incisiva aos secretários de Saúde, Luiz Roberto Barradas Barata, e de Fazenda, Mauro Ricardo Machado Costa.
Na recomendação, assinada pelas procuradoras da República Rose Santa Rosa e Sônia Maria Curvello, e pelo promotor estadual de Justiça de Direitos Humanos, responsável pela Área de Saúde Pública, Arthur Pinto Filho, são apresentados os fundamentos legais que impedem a não centralização das verbas do SUS estadual no Fundo Estadual de Saúde e é lembrado que “a Lei 8429/92, em seu Artigo 11, define como ato de improbidade administrativa qualquer ação ou omissão que atente contra
a legalidade, a honestidade e a lealdade às instituições”.
Após este preâmbulo, ela faz 3 recomendações:
“1- o IMEDIATO (maiúscula no original) cumprimento dos dispositivos constitucionais e legais citados na presente recomendação, a fim de que todos os recursos do SUS, independentemente de origem, sejam depositados no Fundo Estadual de Saúde e nele mantidos, e que sejam gerenciados pelo Sr. Secretário de Estado da Saúde;
2- a devolução de todos os recursos do SUS mantidos em contas ou aplicações financeiras em nome do tesouro estadual à conta-corrente do Fundo Estadual de Saúde, no prazo de 05 dias;
3- o envio mensal de toda a documentação relativa à movimentação dos recursos do SUS ao Conselho Estadual de Saúde, para fim de fiscalização e acompanhamento, nos termos da legislação vigente”.
Ela conclui dizendo que “o não cumprimento dos termos desta Recomendação ... ensejará a adoção das medidas judiciais e extrajudiciais aplicáveis ao caso”.
RENDIMENTOS
A primeira pergunta que gostaríamos de fazer é: onde foram parar os rendimentos das aplicações dos recursos que deveriam estar no Fundo Estadual de Saúde? Sim, porque todo dinheiro que não é gasto imediatamente tem de ser aplicado e os rendimentos fazem parte do Fundo a ser gasto exclusivamente na Saúde. Quando se retira o dinheiro do Fundo e transfere para a conta única do Estado se transforma uma coisa simples em algo extremamente complexo de apurar. Por quê isso foi feito? O secretário Barradas, no ofício 317/2010 dirigido ao ministro Temporão, datado de 12 de abril, alega que “a Conta Única mencionada na auditoria foi opção do Governo do Estado para atender à necessidade de investir todos os recursos financeiros do Estado no curto período em que não estão sendo utilizados, que se dá entre o depósito e o efetivo pagamento aos fornecedores”. E assegura que os rendimentos “também são totalmente utilizados pela própria área de saúde”. Essa argumentação não faz sentido. Por que para aplicar o dinheiro seria necessário transferi-lo para a conta única do Estado? O Estado tem normas de como aplicar o dinheiro e é óbvio que a Secretaria poderia segui-las sem retirá-lo do Fundo Estadual. Portanto, essa explicação do secretário não explica nada. A hipótese que surge é que o Estado tenha utilizado esses rendimentos com outras finalidades. Neste caso, o secretário pode ter dito o que disse, apenas para se livrar da necessidade de confessar o crime de emprego irregular de verba pública, previsto no Artigo 52 da Lei 8080 do SUS, combinado com o Artigo 315 do Código Penal.
Ele, se quiser se ver livre da suspeita de estar mentindo, precisa apresentar o rol de recebimentos e pagamentos com a demonstração de quanto foi cada rendimento e de sua efetiva aplicação na Saúde.
CONTROLE SOCIAL
A segunda infração apontada pela auditoria é o fato da Secretaria de Saúde paulista não se submeter ao acompanhamento e fiscalização de seu Fundo Estadual de Saúde pelo Conselho Estadual de Saúde, como determina a Constituição Federal. Diz a auditoria: “fizemos a leitura de todas as atas de
2006 e 2007 (do Conselho Estadual de Saúde). Não identificamos nenhum registro sobre a atuação do Conselho no que diz respeito ao controle e acompanhamento da movimentação dos recursos financeiros do SUS pelo Secretário de Saúde do Estado”. Na contestação apresentada à auditoria, a Secretaria não se manifestou sobre este item. No seu ofício 317/2010, o secretário Barradas cita algumas atas de reuniões do CES que abordaram aspectos pontuais da execução orçamentária e conclui: “Trata-se assim de um processo em contínuo desenvolvimento e aprimoramento que demonstra a boa intenção desta Pasta”. Nós perguntamos: a decisão de transferir os recursos do Fundo Estadual de Saúde para a conta única do Estado foi submetida ao Conselho Estadual de Saúde? Ou ao menos este foi informado?
Ou a boa intenção desta Pasta permitiu que esta decisão fosse praticada secretamente por anos a fio até ser revelada pela auditoria 8228?
SÓ 10% PARA A SAÚDE
A auditoria também aponta que o Estado de São Paulo não está destinando os 12% de sua receita previstos na Constituição para a Saúde. Diz a auditoria em sua conclusão: “o Governo do Estado
de São Paulo não cumpriu nos dois exercícios analisados pela auditoria, as exigências da Emenda
Constitucional 29/2000 quanto à destinação de no mínimo 12% da receita líquida de impostos e transferências constitucionais e legais para ações e serviços públicos de saúde. No exercício de 2006, destinou apenas o equivalente a 9,97%, enquanto que no exercício de 2007, destinou somente 10,01%..
O Governo do Estado de São Paulo deixou de aplicar na saúde nos dois exercícios analisados, o montante de R$ 2.115.460.459,97, sendo R$ 1.017.092.083,67 no exercício de 2006 e R$
1.098.368.376,30 no exercício de 2007, o que resultou em dano financeiro ao Sistema Único de Saúde e em dano social aos usuários do SUS por restringir a oferta de ações e serviços de saúde à população”.
O secretário Barradas, em seu ofício 317/2010, alegou que os auditores consideraram a sua visão do que são despesas de saúde “como definitiva e absoluta”, que eles “não levam em consideração a hipótese de que podem existir outras metodologias de cálculo de receitas ou de inclusão de despesas de saúde”. Mas não tentou explicar porque a sua outra metodologia incluiu como despesas de saúde as aposentadorias de funcionários, que são despesas de Previdência, e – pasmem os leitores com o ridículo! – o gerenciamento administrativo de unidades prisionais e o fornecimento de alimentação à população carcerária.
SAÚDE DO TRABALHADOR
A auditoria traz mais alguns elementos relevantes sobre a Saúde no Estado de São Paulo. Ela constata que no dia 31/12/2006, último dia do exercício, o saldo na conta de Saúde do Trabalhador, que financia as atividades do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) estadual, era correspondente a 405,72%, mais de 4 vezes o repasse federal daquele ano. Ou seja, como os rendimentos anuais giram em torno de 7 ou 8%, isso quer dizer que existiam mais de 3 anos de dinheiro parado, sem enfrentar o grave quadro de acidentes de trabalho e doenças profissionais que atingem os trabalhadores no Estado. Canavieiros, motoristas, trabalhadores da construção civil e da indústria química, moto-boys entregues à própria sorte, enquanto a Secretaria ficava sentada sobre os recursos federais repassados ano após ano.
ATENÇÃO BÁSICA
Um dos aspectos centrais para avaliar a seriedade de uma gestão em Saúde é a importância que ela dá à Atenção Básica. Isto porque cerca de dois terços dos pacientes são hipertensos e diabéticos. Estes, quando são diagnosticados e tratados cedo, necessitam de um pouco de dieta e exercícios e alguns remédios simples, e com isso se evita, ou retarda muito, o agravamento do quadro.
Quando não são tratados cedo, muitas vezes se descobre a doença quando já ocorreu o infarto, o derrame ou a insuficiência renal. Todos muito caros de tratar e, frequentemente, atendidos pela medicina privada. Esta é a causa que faz os governos ligados aos interesses da medicina privada e dos planos de saúde, apesar dos discursos macios, resistirem ferozmente à implantação da Atenção Básica.
O Brasil está próximo de atingir 50% de sua população com o Programa de Saúde da Família. São Paulo está muito atrás disto, atendendo só 26% de sua população. Mas o dado mais significativo nos é revelado também pela auditoria 8228: a verba destinada pelo Estado para a Atenção Básica é de 37 milhões para um gasto em Saúde declarado livremente pelo Estado ao SIOPS de 10 bilhões e picos.
A Atenção Básica tem menos de 0,4% da despesa em Saúde do Estado. Certamente o nosso prestimoso secretário correrá a dizer que a Atenção Básica é responsabilidade dos municípios. Mas o Ministério da Saúde destina cerca de 10 a 11% de seu Orçamento para a Atenção Básica e, através do PAC Mais Saúde, pretendia elevar este índice para 18%, o que foi momentaneamente inviabilizado com a derrubada da CPMF. Em todos os municípios onde existe Saúde da Família o Ministério está levando um importante apoio financeiro, muito diferente da vinte e cinco vezes menor presença do Estado de São Paulo.
Além disto, o Estado também destina verbas irrisórias para a Vigilância Sanitária e para a Vigilância Epidemiológica, como o leitor poderá ver no Quadro 1, com dados retirados da auditoria 8228.
SAÚDE BUCAL
O secretário Barradas, em seu ofício 317, reclamou que os auditores do DENASUS não aproveitaram a experiência técnica de outras áreas do Ministério. Vamos concluir este nosso artigo atendendo a essa sua reivindicação, trazendo dados da Coordenação de Saúde Bucal do Departamento de Atenção Básica do Ministério, recentemente apresentados ao Conselho Nacional de Saúde.
O Programa de Saúde Bucal possuía, ao final de 2002, 4 mil Equipes de Saúde Bucal (ESB). Hoje, já são quase 20 mil e, até o final do ano, a meta é chegar a 22 mil. Como cada uma atende 4 mil pessoas, até dezembro poderemos ter 88 milhões de brasileiros atendidos pelo Programa de Saúde Bucal. Saímos da situação de um país desdentado, onde só se faziam extrações, para, além das obturações feitas pelas ESBs, ter 832 Centros de Especialidades Odontológicas (CEO) já implantados, fazendo endodontia e periodontia – tratando canal, gengivites e câncer de boca.
Já temos cobertos pelo atendimento das Equipes de Saúde Bucal 35% da população brasileira.
Como o leitor pode ver no quadro 2, elaborado pela Coordenação de Saúde Bucal do Ministério, já existem Estados como a Paraíba e o Piauí que têm 100% de sua população atendida. A Bahia tem 40% e Minas tem 37%. São Paulo está na rabeira, é o último dos 26 Estados, com apenas 11% de atendimento aos moradores de seu Estado. E o coordenador de Saúde Bucal, Dr. Gilberto Puppo, fez questão de destacar que na sua área não existe demanda reprimida, todos os pedidos de implantação de Equipes de Saúde Bucal são prontamente atendidos.
*Jorge Venancio é membro do Conselho Nacional de Saúde.
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