Fonte: Folha de São Paulo
Quem define prioridades em saúde pública?
ISAIAS RAW
Foi esse o desafio que enfrentei, sem que ele me fosse "dado" pela estrutura de poder, para reerger o combalido Butantan |
É UM paradoxo, para quem mal freqüentou as aulas e o treinamento clínico no curso médico, migrar do laboratório para a saúde pública num mundo em que cada um se torna um monoultra-especialista e se outorga a autoridade de definir políticas para pesquisa e saúde pública.
Na bancada do laboratório desde minha juventude, aprendi a valorizar as pesquisas com as moscas da fruteira (drosófilas) e o desenvolvimento dos ovos de sapo. Meio século mais tarde, é graças a essas pesquisas que entendemos a natureza do câncer e de doenças neurodegenerativas. Investigando o levedo das cervejarias, chegamos a entender em grande detalhe o metabolismo e os seus desvios, causa do diabetes e da arteriosclerose.
O fantástico avanço da imunologia tornou o especialista em saúde publica e o clínico um leigo, que dificilmente acompanha as principais perspectivas do fim da vida de cada um e as promessas de aumentar as expectativas de sobreviver mais, eventualmente pagando um preço -em recursos e sofrimento- difícil de aceitar.
Num momento de minha vida profissional, entendi que o futuro do país, que pagou para que eu aprendesse a aprender e financiou minha pesquisa fundamental, tinha que encontrar ações para sair do subdesenvolvimento que punia a grande maioria.
Dividi meu tempo entre o laboratório e a melhoria da formação científica dos jovens -produzir kits e equipamentos para escolas, me juntar a outros amigos para criar equipamentos médicos eletrônicos inexistentes em hospitais que atendiam ao cidadão mais modesto. Não tendo cartorialmente o "direito" definido em leis que outorgam profissões (e dias de folga remunerada), fui banido.
Voltando ao Brasil após uma década de exílio, reavaliei meu papel numa sociedade que me permitiu pesquisar, publicar artigos e escrever livros.
O que faltava não eram pesquisas de bancada nem patentes inúteis que não encontram mercados. O que faltava era a iniciativa de encontrar soluções para atender à sociedade, em vez de limitar o atendimento a quem pode comprar esse benefício.
Foi esse o desafio que enfrentei, sem que ele me fosse "dado" pela estrutura de poder, para reerger o combalido Instituto Butantan, criando tecnologia "transladada" numa indústria que supre 82% das vacinas produzidas no Brasil e que, oferecidas a baixo custo para o Ministério da Saúde, estão disponíveis gratuitamente para a população, protegendo-a como um todo.
Até 2010, esperamos produzir, entre outras, a vacina de dengue e rotavírus, bloquear a leishmaniose e a raiva transmitida pelos cães e atender à demanda de hemoderivados. O desafio não é introduzir vacinas importadas, de custo inacessível para os recursos da União, mas criar uma vacina pentavalente, uma vacina contra a pneumonia e baixar o custo da vacinação da influenza para cobrir as crianças da escola primária, com custo total igual à verba que hoje temos, dominando e criando tecnologia.
O Instituto Butantan de hoje, graças a um grupo de pesquisadores e funcionários, tem o respeito nacional e internacional.
Desde os anos 1950, sempre fui ao poder político -nunca para reivindicar, mas para propor soluções. Como disse Kennedy: "Não pergunte o que seu país pode fazer por você; pergunte o que você pode fazer por seu país".
Todavia isso exige, além de esforço, uma contundente posição: temos a solução que oferece o produto compatível com os recursos de que dispomos. Às vezes temos que tolerar cinco anos de boicote, como foi a produção e introdução da vacina contra a hepatite B, confrontando o poder e não infreqüentemente o interesse de fornecedores e seus intermediários.
Dizer aos pediatras que a vacina DTP acelular não tinha um retorno justificável e o desenvolvimento de uma alternativa não esperaram que o poder central encomendasse, nem mesmo financiasse. A criação das vacinas da maternidade (BCG-hepatite B e BCG-coqueluche-hepatite B) surgiu no Butantan. Evitar a morte por sufocamento de 300 bebes recém-nascidos por dia foi, mais uma vez, iniciativa do Butantan, com apoio da Sadia, e aguarda há dois anos a aprovação da Anvisa. Evitar o gasto de US$ 7 milhões/ano com a toxina botulínica para uso estético e terapêutico ainda aguarda um pequeno empurrão.
Essas são atitudes diametralmente opostas ao usual -escrever artigos ou participar de reuniões sem tomar posições, pôr a culpa no governo e na sociedade, refugiando-se no pseudodever cumprido, sem de fato nada fazer.
Enfrentar a crise atual é um desafio extra para entregar o país às novas gerações, que não podem se esconder, como crianças, na omissão, esperando que o governo encontre soluções.
ISAIAS RAW, 82, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, é presidente da Fundação Butantan.
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