terça-feira, 24 de março de 2009

Marcio Pochmann: Desglobalização

Fonte: Folha de São Paulo

Desglobalização

MARCIO POCHMANN


Com a fragmentação da economia global, a dinâmica geográfica deve adotar novo patamar, com estruturas de hegemonias regionalizadas

A CRISE econômica atual dissemina-se num mundo ineditamente integrado e subordinado à lógica de funcionamento das forças de mercado. Noutras oportunidades, como nas grandes crises sistêmicas de 1873, 1929 e 1973, o mundo era constituído parcialmente por países com economias de mercado.
Nas depressões de 1873 e 1929, por exemplo, havia uma quantidade significativa de colônias vinculadas aos velhos impérios (Inglaterra, França, Holanda e Portugal) que mantinham ativos os modos de produção e consumo pré-capitalistas, e nas crises de 1929 e de 1973 existiam economias centralmente planejadas, como a antiga União Soviética. Hoje, constata-se que o avançado grau de internacionalização capitalista sofre importante abalo por decorrência da crise econômica, que coloca em xeque as principais forças privadas responsáveis pela sustentação da própria globalização.
Sem a ação pública coordenada e civilizada, a inflexão desglobalizadora tende a prosseguir pela via da saída clássica. Ou seja, a promoção da maior concentração de capital nas grandes empresas em meio à contração da demanda estimulada por cortes no nível de emprego e de remuneração dos ocupados. Na sequência das medidas estatais adotadas para salvar empresas financeiras e não-financeiras insolventes e para compensar parcialmente a queda no consumo, ganham maiores destaques as intervenções de caráter protecionista. Outro ciclo de conflitos entre nações pode estar sendo gestado no mundo no caso de continuar predominando a ausência das condições concretas de retomada da trajetória do crescimento econômico e social.
Com a fragmentação em curso da economia global, a dinâmica geográfica deve assumir novo patamar, com estruturas de hegemonias regionalizadas. Noutras palavras, a transição do mundo unipolar desde o fim da Guerra Fria para a multipolaridade evidenciada por sinais crescentes da decadência dos EUA. No mesmo sentido, ressalta-se que o desenvolvimento econômico deve ser reconfigurado tendo em vista a quebra dos vínculos entre as finanças nacionais e globais.
De um lado, pelo enfraquecimento das fontes geradoras de liquidez internacional, fundamentais na retroalimentação dos esquemas de financeirização da riqueza interna e externa. Na ausência de novas formas confiáveis de drenagem dos recursos entre países, empresas e famílias, deficitárias ou não, a base do financiamento da globalização torna-se ainda mais escassa. Para os países não desenvolvidos, os fluxos internacionais de crédito foram praticamente interrompidos, com queda estimada para 2009 de quase US$ 1,2 trilhão para menos de US$ 200 bilhões.
Ademais da dificuldade para as empresas que operam em rede manterem o circuito da produção desterritorializada, o comércio externo sofre enorme retrocesso. Por conta disso, não se mostra desprezível o surgimento de nova onda de recomposição produtiva no mundo multipolar, consagrado por escassos esquemas de financiamentos nacionais e regionais. O fluxo de migrações inversas (das regiões ricas às não desenvolvidas), acompanhado da maior discriminação contra migrantes na Europa, por exemplo, revela o quadro geral de disputa do emprego fora da globalização.
De outro lado, pelo fortalecimento das moedas de curso regional, que pode levar ao estabelecimento de estruturas bancárias modificadas, já que o esvaziamento dos bancos locais, estaduais e regionais terminou por concentrar a quase totalidade dos depósitos em poucas localidades. Ou seja, a quebra de compromissos que poderiam haver entre a poupança e a aplicação de recursos na mesma localidade. De maneira geral, tende a prevalecer a transferência da poupança bancária de regiões pobres para as regiões mais ricas, estimulada fortemente pela concentração bancária.
Em síntese, a desglobalização já desponta como uma das consequências da crise econômica atual. Sua reversão parece possível, mas depende da adoção de outra modalidade de saída da crise que não seja a clássica. Nesse caso, o padrão de financiamento precisa ser reconstituído, bem como outro modelo de produção e consumo necessita ser adotado. Mas, para isso, uma nova maioria política global deveria ocupar o lugar deixado vago pelo grupo de interesses articulados pelo ciclo da financeirização de riquezas, estabelecendo na esteira da governança mundial outra institucionalidade para além das agências multilaterais como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, entre outras.
MARCIO POCHMANN, 46, economista, é presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp. Foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy).

Folha de S.Paulo - TENDÊNCIAS/DEBATES
Marcio Pochmann: Desglobalização - 24/03/2009

segunda-feira, 23 de março de 2009

Geraldo Facó Vidigal: Contra todos, menos dois - 23/03/2009

Fonte: Folha de São Paulo

Contra todos, menos dois

GERALDO FACÓ VIDIGAL


A defesa do ambiente e da saúde está no mesmo nível da proteção privada à coisa julgada. E se essa proteção implica negação das outras?

SEM GRANDE alarde, o STF (Supremo Tribunal Federal) está hoje diante de questão fundamental. O presidente Lula propôs ação complexa, visando cassar liminares dadas a importadores de pneus usados. Alega que os princípios constitucionais de defesa do ambiente e de proteção à saúde pública devem sobrepor-se à liberdade de atividade econômica. O cenário internacional contribui para a dificuldade do caso: o Tribunal do Mercosul obriga-nos a aceitar importar pneus usados do bloco, e a OMC decidiu que o Brasil não pode privilegiar o Mercosul.
Já no Brasil, diversas liminares e decisões judiciais autorizaram empresas a realizar essas importações, entendendo que leis proibindo a importação violariam a livre-iniciativa. É sobre esse grande número de diferentes ações que o STF começou a decidir neste mês. O primeiro voto, da relatora ministra Cármem Lúcia, faz prevalecerem os valores ambientais e a proteção à saúde sobre a liberdade econômica. Baseando-se em estudos técnicos e declarações internacionais, conclui: "A crise não se resolve pelo descumprimento de preceitos fundamentais". Sendo as normas constitucionais, então as decisões judiciais são inconstitucionais -e são cassadas. A ministra reconheceu, entretanto, a validade de decisões transitadas em julgado antes da ação. Essa exceção, contudo, arrisca pôr tudo a perder: duas importadoras tiveram decisões autorizando importar -já transitadas em julgado.
É fato. A Constituição prevê, como pilares do Estado democrático de Direito, que a lei não prejudicará o direito adquirido e a coisa julgada. Esse caso ilustra o quanto perfeita lógica jurídica pode negar absolutamente proteção concreta a valores constitucionais que busca proteger. O resultado de prevalecer o voto será um "monopólio" compartilhado (duopsônio) dessas empresas na importação de pneus usados. Nada no voto impede que as empresas "miltipliquem" a importação dos pneus, revendendo-nos verdadeiro lixo ambiental -que a Europa exporta, destaque-se, em troca de nada. Quer dizer: consideradas as repercussões econômicas, permitir essas exceções implica solapar os mesmos preceitos fundamentais que o voto resguarda e criar discriminação em favor de duas empresas. Toneladas de lixo tóxico serão importadas, prejudicando a saúde pública e o ambiente como se a decisão fosse por sua livre importação.
Diante do caso exemplar, valem alguns questionamentos: se princípios fundamentais pairam acima das leis e estruturam o próprio sistema jurídico; se "defesa do ambiente" e "proteção à saúde" estão no mesmo nível constitucional de "coisa julgada"; e quando a proteção de uma implica negar a dos outros, se a decisão deve optar por proteger o bem mais valioso. Em nome da segurança jurídica, o trânsito em julgado de duas decisões feriria indefinida e ilimitadamente preceitos fundamentais. Não terão essas duas "seguranças jurídicas" decorrido de mera celeridade processual -mera sorte-, de repente capazes de converter decisões judiciais individuais em loteria, concedendo aos sortudos direito de atuar para sempre contra os princípios constitucionais? A natureza da segurança jurídica admite sobrepor interesse particular ao público? Não existem outras formas de compensar, com razoabilidade, esses dois agentes econômicos?
Note-se: o problema é substancialmente mais grave do que benefício, justo ou injusto, a duas empresas: ao proteger preceito fundamental, mas privilegiando coisa julgada, a decisão perde sua eficácia na defesa dos outros preceitos que busca proteger.
Nesse caso, a prioridade da Corte Suprema deve ser a salvaguarda dos efeitos desejados pela Constituição -ou a aplicação de raciocínios jurídicos incensuráveis deve admitir resultar em decisão vazia? Se o STF acompanhar o voto da ministra, como romper com abusos de coisa julgada? Se decidido pela procedência da ação e pela natureza de fundamental dos princípios e valores protegidos, é razoável admitir esvaziamento de efeitos da decisão? Ou deve-se enfrentar a matéria de forma evolutiva, relativizando coisa julgada inconstitucional?
Sem deixar de analisar a questão sob luz jurídico-constitucional pura, para um ponto o Supremo há de atentar. A lei nº 9.882/99, que regula o julgamento da espécie dessa ação agora julgada pelo STF, determina: "A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do poder público". Não diz que deve valer contra todos, menos dois.


GERALDO FACÓ VIDIGAL, advogado, é doutor em direito econômico e financeiro pela Universidade de São Paulo.