domingo, 16 de agosto de 2009

A um passo da vida sintética - 16/08/2009

Fonte: Folha de São Paulo 

A um passo da vida sintética

Avanços na tecnologia de manipulação genética permitirão, nos próximos meses, fabricar DNA em laboratório e torná-lo "autônomo" do ponto de vista evolutivo
CLIVE COOKSON
A biologia está se aproximando de sua "hora Frankenstein" -a criação da vida a partir do zero. Em algum momento dos próximos meses, é provável que cientistas anunciem ter criado uma célula viva com ingredientes que podem ser adquiridos no varejo.
Pesquisadores liderados por Craig Venter, a mais destacada figura na biologia molecular, sintetizaram no ano passado um genoma bacteriano completo -todas as instruções genéticas de que uma célula precisa para viver e se reproduzir- partindo de produtos químicos de laboratório.
Também converteram uma espécie de bactéria em outra por meio de um "transplante de genoma". O próximo passo é inserir o genoma artificial em uma célula vazia e "carregar" a mensagem genética, criando o primeiro micróbio completamente sintético do mundo.
Isso "se provou um problema muito mais complicado do que imaginávamos -mas sabemos como resolvê-lo", disse Venter.
Enquanto os cientistas que ele comanda no J. Craig Venter Institute, nos subúrbios de Washington [EUA], planejam construir do zero uma cópia de um organismo existente, outros fazem experimentos com uma biologia artificial, diferente de tudo o que a natureza tem a oferecer.
Pesquisadores da Fundação para a Evolução Molecular Aplicada, na Flórida, criaram um código genético alternativo com DNA sintético formado por seis letras químicas, em lugar das quatro do DNA natural.
"Trata-se do primeiro exemplo de um sistema químico artificial capaz de produzir evolução darwiniana", diz Steven Benner, o diretor do projeto.
No momento, os estudantes precisam alimentar o sistema com produtos químicos para mantê-lo operacional, mas Benner espera que, dentro de dois anos, ele seja capaz de evoluir e se sustentar sem ajuda -uma forma primitiva de vida sintética.
O micróbio de Venter e o DNA artificial de Benner são projetos especialmente vistosos na empreitada científica ampla e de rápido crescimento que atende pelo nome de biologia sintética.
Os biólogos moleculares vêm transferindo genes entre diferentes espécies, um a um, desde os anos 1970; o trabalho deles nos deu as safras agrícolas geneticamente modificadas e os medicamentos biotecnológicos. A biologia sintética está fazendo da simples engenharia genética algo muito mais ambicioso ao manipular sistemas vivos inteiros a fim de transformar organismos existentes ou criar organismos novos.
Aplicações práticas
Embora o campo deva oferecer percepções básicas sobre a natureza da vida, por exemplo aos "exobiólogos" que procuram por organismos em outros planetas, a maioria dos biólogos sintéticos está interessada em aplicações práticas, especialmente nos setores de saúde, energia e ambiente.
Além de diversas aplicações médicas, há muito entusiasmo quanto às perspectivas de produzir novos biocombustíveis por meio da biologia sintética.
Uma prova de sério interesse no potencial comercial dessa tecnologia surgiu no mês passado, com o anúncio de que a gigante do petróleo norte-americana Exxon e a Synthetic Genomics, empresa criada por Venter, estavam estabelecendo uma parceria de US$ 600 milhões [R$ 1,1 bilhão] a fim de produzir biocombustíveis com base em algas geneticamente modificadas. A biologia sintética será essencial ao sucesso do projeto em longo prazo, diz Venter.
A Synthetic Genomics (uma empresa que opera em separado do Venter Institute, de orientação mais acadêmica e responsável pelo desenvolvimento do micróbio artificial) já conseguiu produzir variantes de algas que secretam óleo de suas células. Isso deve permitir a produção de combustível em um biorreator -o que é mais eficiente do que o processo tradicional de colher algas nas águas e depois extrair o óleo.
Os próximos passos envolvem selecionar ainda mais as algas naturais a fim de encontrar variantes que são particularmente eficientes no uso de energia solar e a conversão do dióxido de carbono em óleos.
Depois, os pesquisadores alterarão extensamente o seu DNA a fim de ampliar o rendimento e alterar a composição dos óleos, de modo a torná-los tão semelhantes quanto possível a combustíveis refinados. Mas Venter afirma que provavelmente vão se passar dez anos antes que produtos desse projeto cheguem ao mercado.
Os biocombustíveis podem ser a porção mais visível da biologia sintética artificial, mas muitas outras aplicações surgirão. Uma das mais importantes será a produção de medicamentos que não poderiam ser fabricados por meio de química e biologia tradicionais.
A principal demonstração do uso da biologia sintética em medicina está em curso há cinco anos na Universidade da Califórnia, em Berkeley, sob os auspícios da OneWorld Health, uma empresa sem fins lucrativos que desenvolve medicamentos para tratar doenças infecciosas negligenciadas.
Jay Keasling, o comandante do projeto, conduziu extensa engenharia genética usando fermento -com a alteração de diversos genes e percursos biológicos- a fim de produzir artemisinina, o mais efetivo tratamento contra a malária, em uma máquina de fermentação microbiana.
No momento, a artemisinina é escassa e cara porque sua única fonte é a artemísia doce, uma planta medicinal chinesa. O slogan do professor Keasling é: "Com as ferramentas da biologia sintética, não precisamos simplesmente aceitar o que a natureza nos deu".
Precisão eletrônica
"Nós mal arranhamos a superfície daquilo que a biotecnologia será capaz de fazer", disse Drew Endy, bioengenheiro da Universidade Stanford, na Califórnia. "Perguntar sobre as aplicações da biologia sintética hoje seria como perguntar a [John] Von Neumann [pioneiro da computação] quais seriam as aplicações do computador, em 1952".
Um dos traços marcantes do trabalho na biologia sintética é o papel essencial desempenhado por engenheiros como Endy. Eles estão introduzindo uma disciplina e um rigor que não costumam ser encontrados na maior parte das biociências.
Paul Freemont, codiretor do Centro de Biologia Sintética e Inovação no Imperial College de Londres, diz que o objetivo nos próximos 20 anos será dar à biologia sintética uma precisão semelhante à da eletrônica. "Nossa compreensão de como as células vivas funcionam não é tão boa quanto a nossa compreensão de aparelhos eletrônicos", afirma. "Queremos chegar ao ponto em que disponhamos de todas as peças necessárias para construir qualquer máquina biológica que desejemos."
Centenas de peças biológicas padronizadas já estão disponíveis por intermédio da BioBricks Foundation, uma organização sem fins lucrativos estabelecida por Endy e outros pesquisadores de biologia sintética. A ideia é que um dia a função de cada peça seja documentada com tanta precisão quanto a dos componentes de computadores, usando especificações.
Os usuários poderiam, então, usar as peças da BioBricks e outras unidades genéticas padronizadas a fim de desenvolver o que quer que lhes interessasse.
Ainda estamos muito longe dessa ordem de precisão. Mas alunos de graduação já vêm fazendo uso extenso de peças biológicas padronizadas, por meio do concurso anual International Genetically Engineered Machine [Competição Internacional de Máquina Geneticamente Engendrada], lançado em 2005.
As realizações dos participantes incluem sangue artificial, um sensor biológico que detecta arsênico e bactérias que funcionam como "computadores vivos" e resolvem problemas matemáticos em tubos de ensaio. Este ano, 120 equipes de estudantes de todo o mundo estão inscritas.
Qualquer tecnologia que tenha o poder que a biologia sintética oferece certamente despertará preocupação -e questões éticas quase religiosas sobre a criação de vida artificial. A biologia sintética é um claro exemplo de tecnologia de "duplo uso" -com amplas aplicações positivas, mas também capaz de ser colocada em uso nefando e destrutivo.
A possibilidade de que terroristas criem um superinseto é perturbadora, ainda que um relatório divulgado no mês passado pelo Serviço de Ciência e Tecnologia do Parlamento britânico tenha concluído que "muitos cientistas e especialistas britânicos em controle da proliferação acreditam que os riscos de terrorismo associados às técnicas de vanguarda para síntese de DNA vêm sendo exagerados nos Estados Unidos".
A íntegra deste texto foi publicada no "Financial Times".
Tradução de Paulo Migliacci.