terça-feira, 24 de agosto de 2010

Escravas da moda: costureiras bolivianas são a parte mais frágil de uma rede que envolve tráfico de pessoas, cativeiros, chantagens e ameaças de morte

Submetidas a jornadas de trabalho de até 20 horas por dia em pequenas confecções, é essa mão de obra que alimenta grandes redes de varejo das quais somos clientes. Conversamos com duas mulheres que viveram esse drama para entender por que o custo da nossa roupa pode ser muito mais alto do que o preço gravado na etiqueta

Ambientes pequenos, quentes, sujos, cheios de pilhas inflamáveis de tecido. Crianças sobre as máquinas de costura. Uma imensa nuvem de pó. Trabalhadores costurando das seis da manhã até as duas da madrugada para receber como pagamento um prato de comida. Rottweillers no quintal para impedir tentativas de fuga. A cena que você acabou de visualizar não acontece em uma fábrica de roupas chinesa. É uma realidade comum nas oficinas de costura situadas na Zona Norte e no Centro da cidade de São Paulo, onde é produzida boa parte das roupas vendidas em grandes magazines, lojas de rua e até de shoppings centers do país.

Estima-se que existam 100 mil bolivianos trabalhando em condições análogas à escravidão em 8 mil pequenas confeccções na capital paulistana. “É uma mão de obra que chega ao Brasil devendo o custo da viagem aos seus patrões. A dívida gera uma relação de servidão que pode se arrastar por meses e até anos”, diz Renato Bignami, auditor-fiscal do Ministério do Trabalho. A quitação desse valor equivale à alforria.

A rota do tráfico

O trabalho escravo em oficinas de costura brasileiras está ligado ao tráfico de pessoas. Para fugir da miséria, os bolivianos procuram os coiotes — responsáveis por levar pessoas de forma ilegal de um país para o outro — para migrar. Esses coiotes se apresentam como “agências de emprego” e transportam os trabalhadores para a Argentina e o Brasil. Prometem empregos em confecções, com salários em torno de US$ 500 (cerca de R$ 890). Lorena*, 20 anos, deixou a mãe e os seis irmãos em Santa Cruz de La Sierra para tentar ganhar em São Paulo um salário maior do que os 600 soles bolivianos (o equivalente a R$ 150) que recebia como vendedora em uma loja de roupas. Depois de ouvir relatos entusiasmados de conterrâneos que afirmavam ganhar bem no Brasil, procurou uma “agência” que dizia cobrar o equivalente a R$ 180 pela viagem.

Em março de 2009, tomou um ônibus clandestino na periferia de Santa Cruz rumo a São Paulo. Sem que ela soubesse o motivo, o ônibus parou em Ciudad del Este, no Paraguai. O coiote disse que não poderiam prosseguir — mais tarde ela foi saber que a fiscalização na fronteira daquele país com o Brasil estava acirrada. Durante a noite, a mando do coiote, ela e os outros passageiros desembarcaram em um lugar desconhecido, que parecia ser uma garagem de ônibus. Nos fundos do terreno, tinha uma pequena casa, onde os viajantes ficaram hospedados. Havia grávidas e idosos entre os passageiros.

“Tinha outros bolivianos esperando para seguir viagem. Éramos umas 90 pessoas em uma casa com cinco camas e um banheiro. Uma senhora nos trazia comida uma vez por dia. O senhor que organizava a viagem nos disse que ficaríamos ali até que pudéssemos prosseguir e não deu mais explicações. Ficamos com medo, dúvidas, mas ele era tão bravo que ninguém teve coragem de perguntar nada. Fiquei assustada, mas tive medo de chorar. Depois de dias naquela situação, uma senhora ficou desidratada. Fomos reclamar. O senhor disse que deveríamos pagar a viagem para ir embora — não tínhamos dinheiro. Caso contrário, ele nos entregaria para a polícia — estávamos sem documentos. A casa era vigiada por um cachorro grande, que nos impedia de fugir. Um homem começou a cavar um túnel no chão com um pedaço de ferro. Depois de duas semanas, um ônibus nos pegou e seguimos viagem sem mais explicações.” Aqui, ela encontrou trabalho em uma oficina que produz roupas para lojas de rua do Centro de São Paulo e para uma grande multinacional.

Boa parte dos bolivianos traficados entra no país pela fronteira com o Paraguai. A costureira Elisabete*, de 39 anos, percorreu o mesmo caminho de Lorena quando veio para o Brasil, em 2003. Deixou Santa Cruz de La Sierra no final da tarde e depois de dois dias de viagem desceu em Assunção, a capital paraguaia. Lá, o coiote acomodou os passageiros em vans carregadas de cigarros, também traficados para o Brasil. “Nesse momento o senhor que organizou a viagem perguntou se alguém tinha droga e começou a nos revistar. Tudo o que eu tinha eram US$ 80. Ele pegou o dinheiro, olhou as cédulas na contraluz e disse que eram falsas. Se eu quisesse prosseguir, deveria deixar com ele. Fiquei nervosa, apavorada. Mas não reclamei, ele era agressivo. Tive medo de morrer e pensei nos meus três filhos, que estavam com minha mãe na Bolívia. Chorando, deixei o dinheiro com ele. Naquele momento, percebi que algo estava errado e que eu não poderia fazer nada. Não tinha documentos para entrar no Brasil legalmente”, diz Elisabete. Os coiotes não informam os passageiros sobre a documentação necessária para a migração. “Dormimos dois dias dentro do ônibus, em uma garagem. Não havia o que comer. Depois, nos levaram para um hotel, onde ficamos mais dois dias. Num determinado momento, avisaram que a polícia ia fazer uma busca e nos colocaram dentro de um túnel pequeno e escuro. Éramos uns 70 escondidos ali. As crianças choravam. Duas grávidas desmaiaram. Ninguém as acudiu. Ficamos duas horas lá dentro. Quando saímos, pegamos nossas coisas (eu tinha uma mochila, a roupa do corpo e um cobertor) e entramos nas vans. Na Ponte da Amizade, descemos do carro e entramos no Brasil andando.”

O comércio de pessoas
Os ônibus bolivianos costumam chegar aos domingos de madrugada em São Paulo. Estacionam em ruas do Centro e da periferia da cidade, onde outras vans buscam os passageiros, que serão vendidos como costureiros nas oficinas. “A perua vai de porta em porta perguntando para os donos das oficinas quem quer costureiro. O proprietário da que fui trabalhar me recebeu bem. Ele era fornecedor de lojas da região central de São Paulo. Disse que eu dormiria em um quarto com outras mulheres e que estava devendo R$ 500 pela viagem para ele. Trabalharia das sete da manhã às dez da noite e ganharia R$ 0,30 por peça. Se tivesse muito serviço, deveria costurar até meia-noite. Só comecei a receber meu dinheiro três meses depois que paguei a dívida. Até então, ganhava o suficiente para comprar xampu, sabonete e papel higiênico. A comida era fornecida pelo patrão. Depois, comecei a ganhar R$ 80, R$ 90 por mês. À noite, perdia o sono preocupada porque não conseguia juntar dinheiro, chorava de desespero.”

O dia a dia
É comum que os trabalhadores morem e costurem no mesmo local — 12 pessoas, em média. Os quartos são coletivos, os travesseiros e cobertores são feitos pelos próprios costureiros com retalhos da confecção. Os donos das oficinas são os responsáveis pela alimentação dos trabalhadores, que costumam ter meia hora para cada refeição. O menu é quase sempre o mesmo: arroz, feijão e salsicha. Pela manhã, café preto e pão puro. Não é raro que a alimentação seja usada como instrumento de chantagem e coerção. Em uma das oficinas que Elisabete trabalhou, só tinha direito à refeição quem produzisse uma quantia de roupas estipulada pelo patrão.

Banhos só são permitidos depois da longa jornada de trabalho. Assim como em qualquer outra atividade que não está relacionada à costura. As mulheres costumam lavar as roupas de madrugada. Aos sábados, quando a alimentação fica por conta dos trabalhadores, o expediente costuma ir até às 13 h. Domingo é dia de folga. Quem não está exausto vai assistir aos jogos de futebol em quadras da região central de São Paulo. Os times são formados pelos próprios bolivianos, divididos de acordo com o local de trabalho. Mulheres também jogam. Lorena se divide entre os jogos e os cultos evangélicos. Elisabete diz que prefere dormir aos domingos. 

 Geralmente, o dono da confecção é o homem de negócios, responsável pela contratação da mão de obra, a compra das máquinas, a venda das peças de roupa. A mulher dele cozinha. Um terceiro membro da família ou um funcionário de confiança age como capataz. Checa o ritmo de produção e delata eventuais tramas e tentativas de fuga. Foi por causa de um capataz como esse que Elisabete ficou reclusa por cerca de um mês em uma das oficinas que trabalhava. “Eu dividia o quarto com uma grávida. Ela estava muito cansada, vomitava por causa dos enjoos e o dono da oficina não ajudava. Começamos a conversar sobre procurar outro lugar para trabalhar. O capataz ouviu nossos planos e contou para o patrão. Um dia, o chefe nos chamou e disse que sabia das nossas intenções. Falou que, se fugíssemos dali, mandaria nos matar. Havia dois rottweilers no quintal. Ele trancou as janelas e a porta do nosso quarto. Passamos os finais de semana sem comer. Conseguimos fugir em um dia de semana, quando a mulher do patrão esqueceu as chaves na porta. Me contaram que o dono da oficina saiu armado atrás da gente, mas não nos encontrou.” Elisabete foi acolhida e assistida pela Defensoria Pública da União em São Paulo e, como testemunhou contra o ex-patrão em um processo criminal, entrou para o programa de proteção à vítima do governo paulista. Passava cada noite em uma cidade, até que foi enviada de volta para Santa Cruz de La Sierra.

O sonho da legalidade
Ao chegar à sua cidade natal, Elisabete diz ter ficado frustrada. “Por pior que sejam minhas condições no Brasil, são melhores do que na Bolívia. Lá, não temos como ganhar dinheiro, não tem emprego e o trabalho na agricultura rende menos do que nas oficinas brasileiras. Fiquei com meus filhos, matei as saudades. Depois de três meses meu dinheiro estava acabando e comprei uma passagem de ônibus regular para o Brasil. Dessa vez queria tirar meus documentos e trabalhar como uma brasileira, com todos os meus direitos. Hoje tenho carteira de trabalho e ganho R$ 800 para trabalhar 12 horas por dia, também em uma oficina. Agora que estou legalizada, quero mudar de ramo e ter uma vida melhor. Não tenho vergonha da minha história. Nunca fiz nada de errado. Fui vítima do tráfico de pessoas e do trabalho escravo. Meu sonho é ganhar melhor para ajudar meus filhos a terminar os estudos e poder visitá-los. Não quero mais viver na Bolívia. Meu país é o Brasil.”

Em busca de uma solução
As fotos que ilustram essa reportagem (exceto a dessa página) foram tiradas em fevereiro por fiscais em uma oficina que produzia roupas para as lojas Marisa. Por causa das irregularidades, a empresa foi autuada e a oficina fechada. O Ministério do Trabalho não sabe informar o atual paradeiro dos trabalhadores que estavam lá no momento da fiscalização. “As oficinas, fornecedoras tanto de grandes magazines como de lojas que de atacado, estão espalhadas pela cidade. Só chegamos até elas por meio de denúncias”, diz Bignami. “É a primeira vez que uma grande empresa de moda é punida por causa do trabalho escravo urbano”. Ele afirma que outras redes e lojas de shoppings estão sob investigação. A ideia das autoridades é pressionar as grandes empresas para fiscalizar seus fornecedores. “É o jeito mais eficiente de acabar com essa situação”, afirma Bignami. “Depois, partiremos para os menores”. Procurada por Marie Claire, a Marisa disse que “repudia relações de trabalho em condições degradantes”. Em nota, afirmou que “descredenciou imediatamente o fornecedor que fazia uso da oficina de confecção investigada”. Diz ainda que “realiza auditorias periódicas em seus fornecedores” e “reafirma que não endossa qualquer prática trabalhista irregular”.

Um bom exemplo de que é possível acabar com esse tipo de exploração na cadeia produtiva foi dado pela Nike. Acusada de ter usado trabalho infantil em fábricas terceirizadas no sul da Ásia, a multinacional foi alvo de um boicote mundial que agrediu fortemente sua imagem. Num esforço para limpar o nome, assinou acordos em que se compromete a exigir fornecedores social e ecologicamente responsáveis. Os nomes e endereços de todas as fábricas terceirizadas estão no site da empresa. Aqui, as autoridades cobram a entrada das empresas de moda em pactos firmados pelo governo e sociedade civil para a erradicação do trabalho escravo. É um bom começo para aquelas que pretendem se alinhar aos padrões internacionais.

* Os nomes foram trocados para proteger a identidade das entrevistadas.

Por:  Maria Laura Neves para a revista Marrie Claire

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