quinta-feira, 12 de junho de 2008

A luta global contra o trabalho infantil

Foto:(Rupak De Chowdhuri/Reuters)

Fonte: Diário de Natal

O dia 12 de junho, em grande parte do mundo, significa a união de esforços e a busca da assunção de compromissos visando combater o trabalho infantil. A fixação e divulgação dessa data, por iniciativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), tem o objetivo primordial de chamar a atenção de todos e de alertar sobre a responsabilidade dos governos, da sociedade e das famílias, diante de uma das maiores chagas sociais da humanidade: a exploração de crianças e adolescentes no trabalho.
No Brasil, os últimos dados estatísticos apresentados pelo IBGE, referentes ao ano de 2006, indicam a existência de cerca de 3 milhões de meninos e jovens inseridos no trabalho, na faixa etária dos 5 aos 16 anos. Grande parte deste universo, com idade até os 14 anos, não é remunerada, e, quando ocorre algum pagamento, o valor não alcança sequer o salário mínimo. Ainda de acordo com a pesquisa, no Estado do Rio Grande do Norte, aproximadamente 45.000 crianças e adolescentes em idade proibida para o trabalho exercem algum tipo de atividade laboral.
É necessário que se amplifique cada vez mais a denúncia contra a injusta e reiterada condenação que esses milhares de seres humanos têm sofrido, ceifados dos direitos mais básicos que, paradoxalmente, são-lhes garantidos, de forma eloqüente, por normas nacionais e internacionais, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e da Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1990, ambas adotadas pela ONU - Organização das Nações Unidas.
O nosso país, é verdade, tem assumido compromissos formais decorrentes da assinatura desses e de outros tratados internacionais, obrigando-se, também, por força da Constituição da República de 1988 e de leis específicas (como é exemplo maior o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA), a dar prioridade e solução às questões voltadas para a garantia dos direitos fundamentais reconhecidos à criança e ao adolescente.
No entanto, não se pode negar que há um abismo desesperador entre o compromisso assumido no plano legal e a realidade cruel que se testemunha em muitos espaços rurais e urbanos do nosso território.
É exatamente no cenário do trabalho de crianças que mais se tem visualizado essa contradição entre as normas e os fatos, revelando-se uma diversidade impressionante de situações ilegais em que se favorece ou se permite a inserção de jovens com menos de 16 anos em atividades laborais, decorrência da exploração barata, da miséria e abandono familiar, da cultura estigmatizadora da pobreza ou da negligência do poder público.
Observa-se, assim, em todas as regiões do pais, principalmente na zona rural, expressivo número de crianças envolvidas no trabalho doméstico, na plantação e colheita da cana-de-açúcar, do fumo, do algodão, do sisal e de frutas; nas atividades das cerâmicas, nas pedreiras, nas casas de farinha, nas carvoarias e na fabricação de cal (caieiras), dentre muitas outras.
No setor urbano, detecta-se o trabalho de crianças na tecelagem, na produção de artesanato, na indústria de calçados e de alimentos, em atividades desenvolvidas em espaços públicos (vendedores ambulantes, engraxates, catadores de lixo, jornaleiros, auxiliares em abatedouros públicos de animais, ajudantes em feiras livres), e, hoje, numa feição tão atual quanto perversa, em atividades peculiares aos domínios do turismo (exploração sexual) e da criminalidade (tráfico de drogas e pornografia).
Registre-se uma outra infeliz constatação: as crianças envolvidas no trabalho encontram-se, geralmente, afastadas da escola ou em situação de freqüência irregular e de aproveitamento deficiente; além disso, a maioria delas sujeita-se a condições danosas à saúde (insalubres, perigosas, penosas e moralmente prejudiciais), muitas submetidas a risco permanente de acidentes, não sendo raros os casos de ocorrência de queimaduras, mutilações, desidratação e doenças graves contraídas.
É evidente que a miséria e a pobreza, responsáveis pela exclusão social e transformadas em tristes signos que envergonham os países em desenvolvimento, estão na base do problema do trabalho infantil. Entretanto, o estudo da questão tem demonstrado, com nitidez, outras causas geradoras dessa realidade, destacando-se a nefasta herança de uma cultura que defendia a cínica idéia de que o trabalho ‘‘dignifica’’ a criança, e que foi elaborada desde a época da escravidão, desenvolvida com a Revolução Industrial e incrementada significativamente a partir das ondas da imigração e da expansão capitalista. Foi com a propagação desse falso dogma que muitos enriqueceram às custas de uma força de trabalho ágil, dócil, facilmente manipulável, e que não sabe reivindicar ou organizar-se.
Tem-se hoje a certeza de que toda criança sofre danos irreversíveis quando desviada das suas reais
necessidades - como ser humano em processo de desenvolvimento -, para precocemente ser inserida no trabalho, comprometendo a sua saúde física e mental, com seqüelas à capacidade de aprendizado, de desenvolvimento e de socialização. Tal constatação possui base científica, estando respaldada por especialistas de várias áreas (médicos, psicólogos e pedagogos) e por organismos internacionais como a ONU e a OIT. Não se ignore, portanto, que a criança que trabalha sofre uma prévia e injusta condenação, porque nunca, em tempo algum, poderá recuperar a integridade da saúde do corpo e do intelecto, que um dia lhe foi desfigurada pela necessidade - nem sempre real - de ‘‘trabalhar para viver’’.
É preciso denunciar, portanto, que a dignidade de milhões de crianças brasileiras está sendo aviltada diante do desrespeito aos direitos humanos fundamentais que não lhes são assegurados: por culpa do poder público, quando não atua de maneira efetiva e prioritária, e por culpa nossa - famílias e sociedade -, quando nos omitimos diante do problema ou quando simplesmente o ignoramos, pela inegável postura individualista que caracteriza o modo de viver no capitalismo contemporâneo.
Diga-se, ainda, que a evidente complexidade da questão e as dificuldades para solucioná-la não devem ser obstáculos para se agir com eficácia: de maneira repressiva, quando a exploração, o abuso ou a inaceitável negligência forem evidenciados (aqui, ressalta-se a atuação dos órgãos de proteção, como os Conselhos Tutelares e o Ministério Público); de forma corretiva, quando o labor da criança decorrer da ignorância ou do estado de miséria da família (situação em que tem pertinência a aplicação de programas sociais); e preventivamente, sob a efetiva e concreta adoção de políticas públicas verdadeiramente voltadas para a promoção da família carente e da garantia de uma escola de qualidade.
Enfim, a conscientização que se exige para uma tomada de atitudes passa obrigatoriamente pela necessidade de se levar a sério a Constituição brasileira, que, solenemente, em seu artigo 227, decreta ser ‘‘dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão’’.
‘‘Não se pode negar que há um abismo desesperador entre o compromisso assumido no plano legal e a realidade cruel que se testemunha em muitos espaços rurais e urbanos do nosso território’’

* XISTO TIAGO DE MEDEIROS NETO — Procurador do Ministério Público do Trabalho
Professor do curso de Direito da UFRN

Nenhum comentário:

Postar um comentário